O crescimento no número de Microempreendedores Individuais (MEIs) em todo o país tem sido de forma exponencial nos últimos anos e esse cenário não é diferente na Bahia. As mulheres, em especial, têm sido protagonistas no empreendedorismo. Dados da Receita Federal apontam que 45% (358,5%) dos MEIs baianos são mulheres.
Na semana em que se comemora o Dia do Trabalhador, na última segunda-feira, 1º, o Portal A TARDE revela histórias das donas dos seus próprios negócios, além de detalhar e comparar ganhos salariais entre elas e os homens no mercado de trabalho, que ainda seguem abaixo do ideal, quando se fala sobre igualdade de gêneros.
Dois segmentos completamente diferentes e um objetivo em comum: independência financeira. De um lado, Ana Beatriz Conceição, formada em Serviço Social e confeiteira, dona da Brigadeibia. Do outro, Majoi Morais, publicitária, artesã e dona da Pink Lemonade Papelaria personalizada. Duas histórias que também se unem por escolhas difíceis e tem como divisor de águas, o período da pandemia, a partir de 2020.
Ana Beatriz, também conhecida como Bia, começou a produção de doces, bolos e sequilhos com ingredientes de alta qualidade, no bairro de Águas Claras, em Salvador, no ano de 2014, e até hoje produz, junto com uma prima, numa cozinha adaptada dentro de casa. Com 28 anos e uma vida minimamente confortável, Bia contou que se formou em Serviço Social em 2019, na Universidade Federal da Bahia (Ufba), e começou a fazer os brigadeiros para auxiliar na permanência na faculdade. Foi a partir de um legado familiar importante que ela achou seu diferencial.
Ana Beatriz Conceição, 28 anos, formada em Serviço Social e dona da Brigadeibia (@brigadeibia)
“Minha prima Jussara, antes de falecer, me deu isso. Eu aprendi a fazer brigadeiro de tapioca, que só ela fazia e se tornou meu diferencial. Eu nunca gostei de nada muito doce demais, sempre busquei o equilíbrio. Então sempre trabalhei com chocolate meio amargo e outros produtos de qualidade elevada”, revelou Ana Beatriz, que aproveitou a faculdade para prospectar mais clientes.
“Comecei a vender ali para os estudantes que faziam parte do movimento estudantil, então a galera comprava e comecei a fazer aniversário das professoras, dos filhos das professoras e os convidados iam, gostavam e pediam. Assim, a gente alcançou vários corações em Salvador”, relatou.
Embora já tenha estagiado na área de formação e publicado artigos em livros, Bia nunca atuou profissionalmente em serviço social. Por isso, a Brigadeibia segue sendo a sua principal fonte de renda e o período de pandemia serviu para se reinventar e crescer com o negócio, já que não era mais possível realizar festas e reuniões presenciais.
“Começamos a fazer a pronta entrega. Como as pessoas estavam com poder de compra com o Auxílio Emergencial, as pessoas queriam mandar mimos umas para as outras. Crescemos bastante nesse período e conseguimos alcançar novos clientes, inclusive no nosso bairro”, conta.
De acordo com ela, a clientela da Brigadeibia ficava mais concentrada nos bairros do centro de Salvador, fruto da época em que vendia na Ufba. A necessidade de expandir as fronteiras, por conta da época pandêmica, impulsionou para que ela fizesse parcerias com outros negócios em Águas Claras.
“A gente conseguiu alcançar essas pessoas do bairro que, inclusive, não acreditavam que dentro da periferia tinha uma confeitaria artesanal de qualidade e que trabalhava com produtos importados. Então todo mundo fica encantado: ‘sério? Você é de Águas Claras e tem isso aqui?’. E a gente não atende só as pessoas daqui, como quem está lá no Garcia, por exemplo, que tem confeitarias renomadas próximas, mas pagam uma alta taxa de entrega e me dão esse privilégio”, descreveu a empresária.
Ana explicou ainda que pretende ampliar o negócio, no entanto, continua com a produção de pronta entrega através de uma plataforma de pedidos online.
“A pessoa entra [no link] e faz o agendamento, e, embora a gente tenha alcançado esse público de pronta entrega, a gente também segue trabalhando com doces de festa, que é o nosso carro chefe”.
Limonada rosa
Saindo da cozinha de Bia e indo direto para o atelier de Majoi Morais, a Pink Lemonade Papelaria também surgiu no período pandêmico. Apesar de ser formada em Publicidade, Majoi já trabalhou como cozinheira, mas encontrou dificuldades na profissão e decidiu pedir demissão em 2021, quando começou com o projeto da papelaria personalizada.
A empresária conta que, através de um conselho de uma amiga e por gostar de trabalhar com festas e decoração, entendeu que poderia enveredar para este lado. Hoje, ela produz o que chama de “mimos”, entre artigos de presentes, doces com embalagens personalizadas, cadernos, planners, bloquinhos e brindes em geral, sempre com mensagens positivas e de carinho para os clientes.
“Fui começando a fazer bloquinhos [de anotações]. Comecei imprimindo e agora eu estou na encadernação. Comprei recentemente uma máquina de recorte que faz adesivos, para encadernar. Mas, no geral, produzo brindes para presentear e o cliente também pode fazer de forma personalizada, por encomenda”, explicou Majoi.
A empreendedora disse que um dos motivos pelos quais optou por só trabalhar com encomendas é a falta de espaço no seu apartamento e porque a maioria dos clientes preferem o serviço personalizado com nomes, o que a faz ‘unir o útil ao agradável’.
A artesã declarou que atualmente se sente mais aliviada com a independência financeira, mas está se organizando para fazer crescer o negócio que escolheu, já que a produção acontece dentro do seu próprio quarto.
“Eu quero ter um espaçozinho pelo menos de produção, porque o meu quarto já está bem apertado. Está complicado. Eu pretendo estar num lugar [maior], conseguir também aumentar a produção e eu sei que futuramente, financeiramente vai ser melhor. Agora tenho essa liberdade, que eu faço minha escala. No final de semana, consigo ir à praia quando quero. Antes eu não podia. A mesma coisa com aniversário de família. Fora que hoje em dia eu consigo fazer meu horário. Acordo cedo para trabalhar e às 18h estar assistindo séries”, brincou.
Desigualdade salarial
Embora muitas mulheres consigam ser donas do próprio negócio, ainda existe uma problemática que precisa de atenção, mesmo com tanto espaço para discussão atualmente.
Um levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mostrou que o rendimento médio mensal das mulheres no mercado de trabalho brasileiro é 21% menor do que o dos homens – R$ 3.305 para eles e R$ 2.909 para elas. Os dados, divulgados em março deste ano pela Agência Brasil, têm como base a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PnadC), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no terceiro trimestre de 2022.
Para fomentar a discussão sobre o problema, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) criou um grupo de trabalho interministerial (GT) em 1º de maio, Dia do Trabalhador, para elaborar a proposta do Plano Nacional de Igualdade Salarial e Laboral entre Mulheres e Homens.
Mesmo nos setores de atividades em que as mulheres são maioria, em média, elas recebem menos. De acordo com a pesquisa, nos serviços domésticos, as trabalhadoras ocupam cerca de 91% das vagas, e o salário é 20% mais baixo que o dos homens. Em educação, saúde e serviços sociais, as mulheres representam 75% do total e têm rendimentos médios 32% abaixo dos recebidos pelos homens.
Na área de cozinha, não é diferente. Majoi Morais relatou que passou por uma situação de desigualdade não só salarial, como também de cargo quando atuava em uma restaurante.
“Descobri que eu era chefe de cozinha quando eu pedi demissão, porque até então eu não sabia. Eu recebia salário de cozinheira, trabalhava como chef e não ganhava para isso. Inclusive, uns amigos meus também pediram para sair e mesmo assim me disseram que não iam me dar o cargo porque não sentiram segurança em mim para ser chef de cozinha. Aí quando eu fui assinar minha demissão, era o que constava lá”, relata.
“Além disso, trabalhava à noite e era algo que eu não gostava. Tentava trocar o turno, mas nunca consegui. E era horrível, porque trabalhava de domingo a domingo e esse foi um dos motivos também que me fez querer sair do ramo”, desabafou a empresária.
Ainda de acordo com a pesquisa da Dieese, no setor de serviços domésticos, as mulheres com menos de um ano de estudo recebem R$ 819; com ensino fundamental incompleto, R$ 972; com ensino fundamental completo, R$ 1.092; com médio incompleto, R$ 926; com médio completo, R$ 1.087; com superior incompleto, R$ 1.120; e com superior completo, R$ 1.257.
No mesmo setor, os homens com menos de um ano de estudo, recebem R$ 1.061; com ensino fundamental incompleto, R$ 1226; com ensino fundamental completo, R$ 1.386; com médio incompleto, R$ 986; com médio completo, R$ 1.470; com superior incompleto, R$ 1.156; e com superior completo, R$ 1.771.
Nas áreas de educação, saúde, e serviços sociais, as mulheres com menos de um ano de estudo recebem R$ 1.565; com ensino fundamental incompleto, R$ 1.333; com fundamental completo, R$ 1.358; com médio incompleto, R$ 1.261; com médio completo, R$ 1.718; com superior incompleto, R$ 1.840; e com superior completo, R$ 4.063.
Com menos de um ano de estudo, os homens que trabalham nessas áreas recebem R$ 1.928; com ensino fundamental incompleto, R$ 1.750; com fundamental completo, R$ 1.551; com médio incompleto, R$ 1.554; com médio completo, R$ 2.076; com superior incompleto, R$ 2.302; e com superior completo, R$ 6.331.
Igualdade de gênero
Com as diversas discussões sobre igualdade de gênero ganhando espaço e visibilidade, o que impacta em diversas outras pautas que afetam a vida das mulheres, a presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-BA, advogada criminalista e feminista abolicionista, Daniela Portugal, ressaltou a importância do debate.
“Uma mulher que não tem independência financeira está mais suscetível a sofrer violência. Tanto ela quanto os seus filhos, porque no momento em que ela sofre algum tipo de agressão, se ela não for independente financeiramente, estará presa ao agressor. Por isso que muitas políticas governamentais são direcionadas preferencialmente ao ‘Minha Casa Minha Vida’ e ‘Bolsa Família’, que são políticas que vão repercutir no sentido positivo na diminuição dos índices de violência doméstica contra a mulher”, explicou Daniela.
A advogada também destacou o impacto da diferença salarial, nos segmentos citados na pesquisa e na área jurídica. De acordo com ela, o funcionalismo público acaba sendo uma saída para minorar a disparidade, já que os salários são pré-determinados através de editais.
“Elas acabam buscando o concurso público e tem passado até mais do que os homens, porque um edital jamais poderia estabelecer remunerações distintas. Ainda que ela saiba que na progressão da própria carreira, na ascensão vertical na carreira, os homens levam vantagem. As instâncias superiores julgam e em outras áreas não é diferente. Assim como quando a gente vai para profissões histórica e tradicionalmente ocupadas por mulheres. A educação é historicamente ocupada por mulheres. Trabalhos relacionados a atividades de cuidado de uma maneira geral. Enfermeiras, por exemplo, são atividades ocupadas historicamente por mulheres e nesses setores a desigualdade é mais acentuada porque o cumprimento daquele serviço já é entendido como se fosse um dever inerente a nós mulheres, e por que remunerá-las por isso?”, questionou.
Daniela Portugal, presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB/BA
Além de todos esses fatores, praticamente de senso comum em toda a sociedade, o histórico de um sistema patriarcal e o machismo ainda contribuem para essa desigualdade. Segundo Daniela Portugal, este é o fator decisivo para manter e depender desta diferença remuneratória.
“A gente vive numa sociedade capitalista neoliberal que depende da desigualdade para existir. O lucro existe porque você presta para mim um determinado serviço, sendo remunerado em um valor menor do que o que eu deveria estar ganhando com isso. Essa disparidade é inerente a uma sociedade capitalista e para que a gente tenha um sistema de poder estabelecido, também precisa ser desigual. Então quem vai sofrer a exploração? Quais serão os corpos exploráveis? Qual vale menos em detrimento de outros?”, indagou.
“A resposta para isso terá como uma das suas estruturas, não apenas o patriarcado, mas outra que é imprescindível destacar que é a desigualdade racial. É nos corpos femininos e especialmente nos corpos negros em que essa disparidade vai fazer as engrenagens desse mercado de trabalho funcionar. A diminuição do valor do trabalho das pessoas negras de uma maneira geral e, sobretudo, na diminuição do valor do trabalho desempenhado por mulheres negras ”, explicou.
A advogada falou também que o cenário de solução para este problema está longe de acontecer, pois passa por várias questões como educação de gênero desde a primeira infância. No entanto, a presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-BA, apontou caminhos e vias de mudança de melhoria para a atual conjuntura.
“Poderíamos destacar as reformas no sistema trabalhista, especificamente do ano de 2017. A gente teve duas importantes alterações. A previsão de multa nos casos de discriminação no pagamento de salários, por motivos de gênero e a previsão do pagamento dessas diferenças salariais, mas só isso não resolve a questão porque se a gente não tiver a efetiva fiscalização, essas normas nunca serão cumpridas. Além disso, muitas empresas preferem arcar com esses valores de multa, já que não são valores significativos. Então é preciso pensar de uma maneira mais complexa as mudanças que precisam ser implementadas para que esse cenário melhore”, explicou.
A utilização de critérios de fiscalização de igualdade de gênero dentro de empresas também é outro caminho apontado pela especialista.
“Quaisquer incentivos públicos para empresas, independente de porte, precisa avaliar se aquela empresa também tem cumprido o seu papel social na inserção de mulheres e pessoas negras. Porque enquanto as políticas governamentais não tocarem no bolso dessas empresas, não vai haver essa disposição voluntária de mudança”, concluiu.
Foto: Denisse Salazar | Ag. A TARDE